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Açores – Que Modelo Logístico?

Açores – Que Modelo Logístico?

Na sequência da indigitação de um novo Presidente do Governo Regional dos Açores e da constituição de um executivo suportado por partidos que estavam na oposição surgiu como um dos objetivos, a concretizar a curto prazo, a realização de um “estudo que avalie um novo modelo de transporte marítimo”.

Por coincidência, no mês passado, uma empresa de transporte marítimo espanhola, com sede em Valência, a Boluda Corporación Marítima, anunciou que pretende reforçar a sua posição no transporte marítimo entre a Península e o arquipélago das Canárias, seguindo uma estratégia centrada numa “alteração disruptiva do atual modelo logístico com aquele arquipélago”.

As comparações entre o transporte marítimo dos Açores e das Canárias têm de ser muito cautelosas porque as duas economias são diferentes. As Canárias têm 2,2 milhões de habitantes e um Produto Interno Bruto per capita de €20.892, os Açores 243 mil habitantes e um PIB per capita de €17.513. O tráfego de contentores é, respetivamente, de 1.400.000 TEU´s e inferior a 140.000 TEU’s.

Mas a principal diferença que pretendo destacar não está na dimensão do mercado e no volume de comércio marítimo, está na abordagem e pensamento estratégico que as empresas de transporte marítimo têm em ambas as Regiões, no âmbito do designado “modelo de transporte marítimo”.

O novo modelo da Boluda Lines

O que a Boluda indicou como motivador da mudança é a consolidação da sua posição de liderança no mercado. O vetor estratégico-chave da sua ação consiste em por em prática um MODELO LOGÍSTICO que garanta “uma flexibilidade horária de carregamento sem precedentes”:

  • Pela primeira vez os exportadores da Península para as Canárias poderão efetuar operações de carregamento a partir de qualquer ponto de Espanha e ligar-se diretamente durante o dia com as saídas marítimas que a Boluda tem programadas a partir de Cádis. A Boluda irá alargar os horários noturnos de descarga nas Canárias de modo a que as mercadorias possam ser entregues nos armazéns de forma imediata na sequência do desembarque do navio.
  • Por outro lado, aos exportadores das Canárias serão disponibilizadas saídas diárias a partir dos portos de Tenerife e Las Palmas e beneficiarão de um aumento das ligações inter-ilhas (Fuerteventura, Lanzarote e La Palma) orientadas para satisfazer a procura pelos produtos perecíveis. Os “cut-off” dos navios passarão a ser diários, o que pressupõe, pela primeira vez na história deste tráfego, que perder o embarque de um contentor não implica ter de esperar uma semana.

O novo serviço de transporte marítimo, com a denominação comercial DAILY CANARIAS, será suportado em seis navios porta-contentores e numa estrutura logística onde se engloba uma ligação fluvial (serviço feeder) entre Cádis e Sevilha e uma ligação ferroviária Sevilha-Madrid.

O armador Boluda pretende que a sua organização operacional se converta numa extensão da cadeia de abastecimento dos seus clientes. Com o Daily Canarias os clientes da Boluda passarão a ter menores tempos de distribuição, menos stocks de produtos, uma redução das emissões de gases (maior eficiência ecológica) e, “last but not the least”, uma maior vida útil das mercadorias transportadas.

Na minha opinião, é um exemplo notável de INOVAÇÃO em transportes marítimos. Uma INOVAÇÃO que vai muito para além da “digitalização” que por vezes nos parecem fazer crer que é a solução para todos os problemas.

Não tenho notícia de que esta ação da Boluda Lines corresponda a qualquer nova legislação do Governo Espanhol para a cabotagem insular. Trata-se “apenas” de uma estratégia empresarial.

O modelo dos Açores

O modelo de transporte marítimo na Região Autónoma dos Açores é o que está na lei da “Cabotagem Insular”. Lei elaborada na Assembleia da República, por pressão dos armadores face a uma mudança no enquadramento legal, decorrendo de um Regulamento de 1992 da Comissão Europeia que determinou “a aplicação do princípio da livre prestação de serviços aos transportes marítimos nos Estados membros”. Mudança altamente disruptiva porque punha em causa a posição competitiva dos armadores que até aí se desenrolava num mercado reservado. A lei teve vários ajustamentos desde o ano de 1998, mas o modelo manteve-se.

Em consequência: o comércio interno de produtos locais quase desapareceu, a exportação de vários produtos não tem oferta logística que permita colocá-los no continente (por exemplo, carne fresca, peixe, alguns produtos láteos, flores e frutas), fazem-se investimentos vultuosos em armazéns intermédios e centros logísticos na Região e em Lisboa para constituir stocks. Tudo porque a frequência e os tempos de trânsito dos serviços marítimos são inadequados.

Nos raros debates sobre o assunto quase nunca se menciona um MODELO LOGÍSTICO para a RAA. Por várias razões, algumas reais outras apenas fruto do horror à mudança, o assunto adquiriu o estatuto de “tabu” a vários níveis.

O importante

O importante é comparar a estratégia da Boluda Lines para as Canárias com a postura dos armadores que intervêm no transporte marítimo nos Açores.

No primeiro caso, procura-se construir uma cadeia de abastecimento com o menor número possível de quebras (do produtor ao local de venda ao consumidor). No caso dos Açores, constroem-se armazéns intermédios para constituir stocks e a partir daí entregar em centros logísticos de onde, finalmente, é efetuada a distribuição ao retalho.

No primeiro caso, o transporte marítimo decorre do modelo logístico que importadores e exportadores consideram mais eficiente. No caso dos Açores, o transporte marítimo decorre de uma lei com 22 anos onde os interesses dos importadores e exportadores (a economia regional) não foram tidos em conta, ou pelo menos não o foram de forma eficaz.

Não será altura de iniciar um debate sério sobre o tema? De por fim ao “tabu”? Não teriam os três armadores presentes no mercado vantagem em serem os dinamizadores da mudança? O que esperam? Uma mudança por rotura económica do modelo, provavelmente mais perigosa e penalizante para todos? Uma mudança por decreto?

Fonte: Fernando Grilo / Transportes & Negócios

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