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João Gonçalves “Sem uma unidade de investigação regional robusta não é possível ombrear, quanto mais liderar grandes missões internacionais”

João Gonçalves “Sem uma unidade de investigação regional robusta não é possível ombrear, quanto mais liderar grandes missões internacionais”

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João Gonçalves (Director do Centro de Investigação Okeanos) – Um biólogo dedicado aos assuntos do mar dos Açores. Moçambicano de nascimento, criado e formado na área metropolitana de Lisboa, encantado com este arquipélago.
Empenhei-me, em colaboração com outros colegas, na criação do programa de observação das pescas dos Açores (POPA), na legislação da observação de cetáceos dos Açores, na criação do Observatório do Mar dos Açores (OMA). A nível docente, envolvi-me na criação do curso CET de operadores marítimo-turísticos, no mestrado em estudos integrados dos oceanos, na licenciatura e no doutoramento em ciências do mar da nossa universidade.

Qual o seu percurso de vida no campo académico, profissional e social?
Em 1985 comecei a dar aulas no ensino secundário no Seixal. Descobri os Açores em 1989, quando vim, com alguma hesitação, trabalhar para a Horta. Foi uma descoberta fascinante. Amor à primeira vista! Fiquei! Fui-me dedicando a múltiplas assuntos relacionados com as ciências do mar e hoje sou docente da Universidade dos Açores no pólo da Horta. Tento participar activamente nas actividades sociais locais, integrando organizações não-governamentais e associações escolares.

Como se define a nível profissional?
Um apaixonado pela multiplicidade de oportunidades que os oceanos apresentam e preocupado com a sustentabilidade da sua utilização.

Quais as suas responsabilidades?
Actualmente, tenho mais funções docentes e de gestão do que de investigação. Participo na docência de várias disciplinas e na direcção de cursos da Universidade dos Açores, bem como na orientação de dissertações de mestrado e doutoramento. Estou empenhado na consolidação do centro de investigação Okeanos de forma a que nos próximos 2 anos de mandato como Director, consiga levar esta tarefa a bom porto em estreita colaboração com o grupo de investigadores que fazem parte deste centro.

Como descreve a família de hoje?
Continuará a ser unidade básica da sociedade, embora de dimensão mais reduzida do que no passado, mas mais exigente em termos de dedicação, em que os laços hereditários tenderão a ser substituídos pelos vínculos emocionais. É mais importante a qualidade do tempo passado em família, dando-lhe real atenção, do que uma presença constante mas distante.

Que importância têm os amigos na sua vida?
São essenciais, embora os possa considerar de várias formas, os permanentes que nos acompanham desde a juventude, os colegas com quem vamos trabalhando e os conhecidos que também são importantes nas interacções sociais.

Para além da profissão, que actividades gosta de desenvolver no seu dia-a-dia?
Uma multiplicidade de coisas: actividades de ar livre, como andar a pé, de bicicleta, mergulhar, nadar, bricolage, ler, assistir a sessões culturais e espectáculos (cinema, etc.).

Que sonhos alimentou em criança?
Tinha o sonho de um dia ser cientista. E o sonho foi-se materializando!

O que mais o incomoda nos outros?
A falta de altruísmo, ou seja o egocentrismo.

Que características mais admira no sexo oposto?
Para além da fagulha de atractividade, a empatia natural, companheirismo, cumplicidade e altruísmo são essenciais.

Gosta de ler? Diga o nome de um livro de eleição?
Ler é fundamental. Embora tenha pouco tempo para ler, para além da literatura profissional. Tento evitar leituras de livros muitos grandes por manifesta falta de tempo. Prefiro contos e compilações por serem de leitura mais descontínua. Não tenho propriamente um livro de eleição, mas saliento livros recentes de natureza diferente que me surpreenderam positivamente: Freakonomics, Pensageiro Frequente e Um Km de Cada Vez.

Como se relaciona com o manancial de informação que inunda as redes sociais?
Tento evitar as redes sociais, dado que na maioria as vezes só trata de frivolidades. Mesmo na internet, a quantidade de informação disponível é imensa.

Costuma ler jornais?
Procuro estar actualizado sobre o que se passa na sociedade a nível nacional e regional, pelo que é imprescindível ler jornais. Em vez da leitura em papel, que tinha o hábito de fazer aos fins semana, adaptei-me a ler jornais on-line, sobretudo ao nível dos artigos de opinião, uma vez que as notícias acabam por chegar via canais de TV e sítios de notícias.

O que pensa da politica?
É vital para as sociedades democráticas. Já tenho mais dificuldade em compreender o clubismo partidário, aliás como qualquer clubismo. Não consigo compreender como se pode ser fiel a uma organização política que vai mudando ao longo do tempo, mantendo praticamente como único factor identitário um símbolo.
Participo sempre como votante. Não procuro os políticos, mas se for solicitado sou capaz de colaborar activamente desde que se defendam questões que considere particularmente relevantes e coincidentes com o que defendo. Foi o que aconteceu na última campanha autárquica.
Tenho antipatia pelos políticos que nos tentam vender a banha da cobra, que apresentam promessas irrealistas, capazes de dizer uma coisa e depois fazer o seu oposto com a mesma naturalidade recorrendo a malabarismos retóricos para as justificar. Os princípios éticos dos políticos são o aspecto mais importante. Casos recentes de aproveitamento financeiro de cargos políticos através de expedientes legais deixam-me perplexo quanto à solidez dos princípios.

Gosta de viajar? Que viagem mais gostou de fazer?
Não tenho particular apetência para viajar. Considero-me mesmo como pouco viajado. A nível profissional tenho solicitações regulares para viajar, mas tento reduzi-las ao mínimo possível. Também evito fazer turismo em programas organizados.
Numa viagem recente gostei especialmente das ilhas de El Hierro e La Graciosa, que ficam nos extremos das Canárias.

Quais são os seus gostos gastronómicos? E qual é o seu prato preferido?
Gosto praticamente de tudo, da cozinha regional, à nacional, espanhola, italiana, indiana, chinesa, etc.. Aliás gosto de cozinhar e fazer experiências culinárias. Recentemente tenho utilizado algumas espécies de algas dos Açores na confecção de pratos tradicionais que, na minha opinião, resultam muito bem. Uma entrada de queijo de cura longa de São Jorge, pão de milho, sopa de funcho com linguiça, ventresca de patudo ou voador grelhado, acompanhado de inhame e salada, terminando com uma boa fatia de ananás maduro de São Miguel, constitui uma refeição de eleição.

Que noticia gostaria de encontrar amanhã no jornal?
Que o Governo nacional e regional vão promover reuniões de trabalho para definir uma política coerente de longo prazo para as ciências do mar, envolvendo as entidades já existentes, em vez de nos bombardearem com promessas de novos centros de investigação que não foram discutidos com ninguém, fruto de promessas eleitorais inconsequentes que tenderão a ser cumpridas de qualquer forma, acabando por desbaratar fundos públicos em acções que não vão ter continuidade a médio prazo.

Se desempenhasse um cargo governativo descreva uma das medidas que tomaria?
Simplificação do modelo de financiamento da investigação e do ensino superior. O modelo actual é de uma complexidade exasperante. Não faz sentido haver agências paralelas ao Governo a financiar, de forma independente, a investigação, enquanto o Governo financia apenas a actividade docente. É um absurdo que o financiamento do ensino superior se vá reduzindo à medida que aumenta o nível de ensino, ou seja diminui das licenciaturas para os doutoramentos. A situação nos Açores ainda é pior, limitando-se a copiar o modelo nacional, sem qualquer rasgo de inovação.

Qual a máxima que o/a inspira?
Tenho várias, mas gosto especialmente da história tradicional dos índios norte-americanos do lobo mau e do bom que se defrontam dentro de cada uma de nós, vencendo aquele que alimentamos diariamente.

Em que época histórica gostaria de ter vivido?
Sem dúvida na época actual em que há tanta coisa desafiante a acontecer.

O Dr. João Gonçalves é o Director do Okeanos. Em que fase está o projecto?
O centro I&D Okeanos da Universidade dos Açores foi criado em 2015, em virtude da reforma institucional da Universidade. Até então, a investigação feita no pólo da Horta da nossa universidade, foi feita através do IMAR, uma instituição sem fins lucrativos, criada para responder às disponibilidades de financiamento da investigação que surgiram a nível nacional. Esta entidade teve e tem um papel muito importante na captação e gestão de financiamentos de investigação a nível regional, nacional e internacional, permitindo a contratação de um corpo considerável de investigadores e técnicos. Contudo, faz cada vez mais sentido ter uma unidade de investigação que seja parte integrante da universidade, de forma a canalizar internamente os financiamentos nesta área científica através deste novo centro.
O Okeanos já está acreditado a nível regional na DRCT desde 2016. A acreditação a nível nacional é feita na FCT que só abre candidaturas para este efeito de forma pluriaual. A penúltima fase de candidaturas foi em 2013 e, nessa altura, os investigadores do IMAR concorreram a esse financiamento em coligação com outras instituições através do consórcio informal, designado por MARE. No final de 2017 a FCT abriu uma nova fase de candidaturas para centros de investigação e, nesta altura, já estávamos prontos para concorrer de forma independente a esta acreditação e possível financiamento. Depois de muito debate interno, no início deste ano, concretizamos a candidatura do Okeanos a nível nacional. Integraram esta candidatura cerca de 3 dezenas de investigadores doutorados. Esperamos que o processo de avaliação decorra até ao final deste ano. A próxima etapa deste processo consistirá numa visita da comissão de avaliação ao centro que ainda não está programada.
Desde 2017 que o Okeanos está a concorrer a projectos de investigação a nível regional. No corrente ano já concorremos ao programa nacionais Fundo Azul (5 candidaturas) e ao programa regional PO-Açores 2020 (7 candidaturas).

De que forma, com o Okeanos, ganha a Universidade e os Açores?
A Universidade precisa de ter centros de investigação nas áreas científicas que são diferenciadoras a nível nacional e o mar é certamente uma delas. Aliás, dentro de pouco tempo, as universidades só vão poder conferir graus académicos de doutoramento se tiverem unidades de investigação acreditados e com boa avaliação nessas áreas científicas. Assim, a consolidação deste centro na universidade é uma mais-valia institucional. Para os Açores, é ainda mais relevante uma vez que temos uma área marinha imensa. A área terrestre do nosso arquipélago não chega a representar 1% da zona económica exclusiva dos Açores. As actividades relacionadas com o mar têm um potencial muito relevante que tem que ser utilizado de forma sustentável.

O Secretário do Mar, Ciência e Tecnologia anunciou recentemente a intenção de contratar mais 25 investigadores …
Penso que esta medida está relacionada com as recentes candidaturas de projectos de I&D no âmbito do programa Açores 2020, em que cada projecto, com um limite de financiamento máximo de 180 mil euros em 3 anos, tem a obrigatoriedade de contratar um investigador pelo mínimo de 2 anos. Ora, se se contratar um investigador por período igual ao da duração do projeto pagando os valores que são obrigatórios para esta categorias profissionais, pouco vai restar para fazer investigação, Falamos de valores de cerca 10 mil euros por ano para a investigação, o que é pouco significativo se tivermos em conta todas as despesas geralmente associadas a I&D. Diria que é um financiamento de equilíbrio instável, provavelmente adequado para projectos de baixa intensidade tecnológica, mas nitidamente insuficiente para projectos de maior intensidade, que obrigará os proponentes a terem que escolher se investem mais em contratação de investigadores ou na própria investigação. Mais uma vez a precariedade do emprego científico só é resolvida para um curto espaço de tempo, ficando o proponente com o ónus de ter que decidir onde investir mais.
Por outro lado, a questão de aumentar a colaboração entre empresas e centros de investigação, prevista no programa Tansfer+, que procura interligar a produção científica com as empresas e a economia, não é fácil de alcançar. É que o reconhecimento das carreiras científicas e renovação de contratos de investigadores está muito dependente da produção científica em revistas científicas com factores de impacto, que pouco tem a ver com a colaboração com as empresas e com a economia. Criou-se, de facto, um mecanismo de valorização das carreiras científicas que aliada à sua precariedade, acaba por ter poucas preocupações com a economia real. De facto, é possível criar outros modelos, mas para isso é preciso soluções mais criativas, adaptados à realidade da nossa economia e não nos limitarmos a copiar fórmulas adequadas a outras realidades e economias de outra escala. É curioso que o modelo actual, que facilmente se poderia considerar como neo-liberal, tenha sido implementado por um ministro da área política da esquerda.

As parcerias nacionais e internacionais são entendidas como uma mais-valia para a investigação marinha nos Açores desde que os investigadores açorianos que participam nas missões do país ou de parceiros internacionais no mar dos Açores não fiquem numa situação diminuída, mas sim numa posição cimeira…
De facto, este é um ponto nevrálgico no desenvolvimento das ciências do mar nos Açores. Sem uma unidade de investigação regional robusta em termos técnicos, financeiros e jurídicos, não é possível ombrear, quanto mais liderar grandes missões internacionais. Resta-nos apanhar a boleia das colaborações em projectos financiados por outros. Muitas vezes. ter parcerias locais é uma vantagem para ter sucesso nas candidaturas de projectos de I&D concorrencial. Isto pode ser positivo se for entendido, como um princípio para ter um corpo científico robusto na região, mas tem que ser acompanhado pela consolidação das instituições em que se inserem, para ganharem dimensão internacional.
Este problema não é só dos Açores, mas nacional. Um país com uma das maiores zonas económicas exclusivas a nível mundial, que ainda pretende aumentar a sua extensão e praticamente tem uma frota de navios de investigação nitidamente insuficiente para tão vasta área. Acabamos sempre a investir em sectores não prioritários por razões eleitoralistas de curto prazo. Veja-se o caso do Euro 2004 em que construímos cerca de 10 estádios de futebol. Nesse ano lembro-me de ter visto chegar aos Açores o novo navio de investigação norueguês “G.O. Sars”, uma embarcação de investigação de capacidade global, e nós … campos de futebol!
Sendo a Noruega muito mais rica do que nós, praticamente com a mesma dimensão populacional, nunca se meteu em aventuras de organizar Euro Cups, mas investe naquilo que é fundamental para o seu desenvolvimento – o mar, sendo, por isso, um dos países líderes nessa área, seja na aquacultura ou nas tecnologias marinhas. Mas fá-lo desde sempre e os resultados aparecem sempre que há políticas coerentes de longo prazo. É de facto uma questão de mentalidade e prioridades.

Estão a criar-se condições para que se faça uma investigação aplicada que leve à constituição de startups com sede na Região com base na investigação marinha que se desenvolve nos mares dos Açores?
A investigação aplicada é um dos parentes pobres da investigação a nível regional. Muita desta investigação deveria ser efectuada de forma regular para monitorizar as actividades da economia do mar, seja nas pescas ou no turismo, para que se possam modernizar e crescer. Tenho-me deparado com muitas situações confrangedoras em que há mais informação disponível sobre assuntos ultra-especializados e praticamente nenhuma sobre assuntos mais práticos. Por exemplo, se quiser saber qual a eficácia da pesca com armadilhas nos Açores não há dados que possam servir de indicador para tomar decisões. Se quiser saber qual é o estado das populações de lapas ou algas nos Açores para poder decidir sobre a atribuição de licenças de apanha, só recorrendo mesmo à adivinhação. Se quiserem tomar decisões sobre o turismo de mergulho subaquático nos Açores, não há dados coerentes disponíveis. E poderia continuar. Parece que não aprendemos nada desde os tempos da baleação, em que se explorava este recurso sem ter nenhuma ideia sobre a sua sustentabilidade.
A questão das startups ligadas às unidades de investigação é uma possibilidade que tem que estar bem equacionada e não é só uma questão tecnológica. Tem que haver um enquadramento jurídico que defina e potencialize estas parcerias. A biotecnologia azul é uma área propícia a estes desenvolvimentos. A aquacultura, que também se integra neste tipo de biotecnologias, tem que ser apoiada para seleccionar as espécies locais mais apropriadas, em parceria com as unidades de investigação e promotores privados, para que, em caso de insucesso, não se perca todo o investimento. Não faz sentido apoiar apenas entidades privadas na esperança que apareçam com soluções miraculosas.

Que mais quer acrescentar que considere útil, no âmbito desta entrevista, sobre a relevância da economia do mar para os Açores?
A economia do mar tem que estar centrada no conhecimento e na formação especializada, pelo que é preciso ter um modelo a médio/longo prazo que permita este desenvolvimento. Para além da investigação, a formação superior, seja de cursos de curta duração (cTEsP’s), licenciaturas, mestrados e doutoramentos, tem que estar consolidada e devidamente financiada. O orçamento do estado para as universidades públicas é muito exíguo mal assegurando as actividades docentes, e praticamente não suportando actividades práticas. Sabe-se que, no caso do mar esta componente é mais onerosa, mas é aqui que o governo regional pode ter um papel complementar ao do governo central, dando condições para que estas actividades floresçam a nível regional podendo dar-lhe dimensão internacional, mas sem reinventar a roda!
Gostava de terminar abordando a questão paradoxal da precariedade dos investigadores no país. A recente modernização da ciência teve como consequência a actual precariedade generalizada dos investigadores. Investigadores altamente especializados que se dedicaram a desenvolver áreas do conhecimento durante décadas têm situações profissionais aviltantes, nunca sabendo de vão ter o contrato renovado no próximo concurso de financiamento. Passamos de um modelo de garantias vitalícias ligados a entidades públicas para o oposto, com vínculos de curto prazo, financiados por entidades que nem conhecem os seus subordinados, e altamente dependente dos ciclos de financiamento europeus. Se tivéssemos capacidade de fazer reformas institucionais regulares não estaríamos nestes extremos!

Fonte: Correio dos Açores

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