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O jornal que mudou a vida de um pescador

O jornal que mudou a vida de um pescador

Jacinto Rego, hoje com 88 anos, não esquece o dia em que, levado pelo vento, o jornal lhe bateu no rosto.

Tinha cerca de 18 anos quando o vento lhe atirou o ‘Correio dos Açores’ contra o rosto. Depois, a persistência e determinação fez com que aprendesse a ler sozinho depois de ter gostado de ver “aquelas letras bonitas” que só depois soube o que queriam dizer. Jacinto Sousa Rego admite que o ‘Correio dos Açores’ lhe mudou a vida, pois, como homem do mar que sempre foi, se não soubesse ler, não conseguia fazer o que agora faz como passatempo, encadernar e dourar livros. Ainda se lembra que o nome de Salazar, que vinha escrito a ilustrar uma fotografia do Presidente do Conselho, foi das primeiras coisas que leu. Mas foram as palavras “Correio dos Açores” que mudaram para sempre a sua vida.

Aos 88 anos, Jacinto Sousa Rego senta-se a ler o jornal e admite orgulhoso que foi com o Correio dos Açores que aprendeu a ler. Com muita determinação à mistura e mesmo um pouco de sorte, o então pescador com cerca de 18 anos não teve oportunidade de ir à escola: “Nas Capelas não havia escola, só em Ponta Delgada”, explica.
Andou apenas algum tempo na “Escola do Padre Camilo” onde aprendeu apenas a juntar algumas letras, “só sabia juntar o T e A dá TA, o P e E dá Pe, o M e o I dá MI, só sabia ler isso não sabia mais nada”. A necessidade da época obrigaram o jovem Jacinto a sair da escola e a enveredar pelo negócio da família, ser pescador no barco do avô. 

Mas, aos 18 anos, aconteceu algo que iria mudar para sempre a sua vida. 

Homem do mar, todos os dias preparava as lanternas para levar para o mar na soleira da porta do avô, na rua de São Pedro nas Capelas onde ainda reside. Um dia, sentado à soleira da porta apercebe-se que andava no ar um papel “empurrado pelo vento que o levava de um lado para o outro até que veio contra a minha cara. Eu peguei nele, amarrotei-o e joguei-o para o meio do caminho outra vez”, conta.
Mas o vento continuou a fazer bailar aquela folha de papel que, meio desfeito, volta a voar contra a cara do jovem Jacinto. “Aí peguei nele, estendi-o na soleira da porta e sentei-me em cima dele. Quando acabei de preparar as lanternas para levar para o mar, peguei então no papel e vi umas letras grandes e bonitas mas não sabia o que era porque não sabia ler”, afirma.
Jacinto fica encantado com as “letras lindas” e perguntou-se o que será que queriam dizer. Uma vizinha, que tinha vindo da América, ia a passar e Jacinto perguntou-lhe “menina Berta que letras são estas aqui?”. Ela perguntou se ele não sabia ler e respondeu que era um jornal e que as letras bonitas para onde ele apontava queriam dizer ‘Correio dos Açores’.
O jovem agradeceu e a vizinha seguiu o seu caminho. “Comecei a juntar o C e o O, mas quando vi os dois ‘Rs’ parei e quando a menina Berta voltou a passar por mim eu disse-lhe que tinha ali dois ‘Rs e que não conseguia perceber porquê. Ela explicou-me que tinha de ter dois ‘Rs’ para se ler Correio senão lia-se Coreio. Eu então comecei a ler Co-rreio, depois ‘dos’ e não li mais nada”.

Mas o gosto pela leitura ficou-lhe na cabeça até porque, sendo homem do mar, precisava de saber ler “porque o vendilhão levava-me peixe e eu não sabia marcar o nome dele para saber quem era e tinha de aprender”. Mas, naquela altura, não havia quem o ensinasse e “procurei aprender e Correio dos Açores foram as primeiras letras que li”. Ia soletrando as palavras, com os poucos conhecimentos que tinha.
Jacinto Sousa Rego lembra-se de um dia ver a fotografia de Salazar no Correio dos Açores e de se perguntar “o que será que querem dizer estas palavras por baixa da fotografia?”. Quando começou a juntar as sílabas que já conhecia “e li Salazar, fiquei muito contente porque já sabia ler. Daí em diante pegava no jornal e ia lendo. Primeiro as letras maiores até que cheguei a um ponto que já lia o jornal todo”.
Jacinto Sousa Rego levou “muitos meses, talvez anos” a saber ler o jornal todo mas a persistência e determinação levam-no agora a “não ter medo de ler à frente de ninguém”. Quanto à escrita, o processo foi semelhante e aprendeu também a escrever sozinho mas reconhece que “às vezes dou erros”. Dá o exemplo da neta, Sidónia que teve um filho e Jacinto encadernou-lhe um álbum para apresentar no baptizado. “Eu escrevi Sidónia com Ç, porque não sabia, mas, geralmente, quando não sabia escrever alguma palavra, ia ao dicionário”, afirma. 

“O jornal mudou a minha vida”
Jacinto Sousa Rego diz com orgulho que aprendeu sozinho a ler, apenas com a “ajuda” do Correio dos Açores. “Teimei sempre porque quem quer pode”, avança ao longo da entrevista, “é uma frase minha”, acrescenta.
É então que afirma que “o Correio dos Açores é que me ensinou a ler e mudou a minha vida toda”, afiança ao acrescentar que “um homem que não sabe ler não é nada”.
O pequeno Jacinto, com então cerca de 18 anos, fez-se homem e continuou na vida do mar “pescava à noite, toda a qualidade de peixe”. Até que adoeceu e o médico proibiu-lhe de regressar ao mar. “Eu respondi que não sabia fazer mais nada e que não conhecia mais nada além do mar. Tentei mas, realmente, não conseguia mais”.
Com perto de 50 anos teve de mudar de vida mas ficou sempre ligado ao mar. “Fui pagador das baleias, eu ia para a cidade, pegava no dinheiro da União das Armações Baleeiras e ia fazer os pagamentos aos baleeiros da fábrica ali dos Poços”, relembra.
Mas quando “o ‘A.C. Cymbron’ soube que eu estava em casa, deu-me serviço no escritório”. Jacinto pensava que “ia varrer o escritório porque eu era um homem do mar, não conhecia mais nada”. Mas o trabalho era para caixa da União das Armações Baleeiras: “O senhor Jácome disse-me que ia tomar conta do dinheiro e eu respondi que um homem do mar não percebia nada disso”, mas apresentou-se sempre ao trabalho. Lembra-se que, quando foi fazer um depósito de 37 contos ao banco, “chorei pela rua abaixo, porque não sabia o que era um depósito mas cheguei ao banco e expliquei o que queria fazer e disseram-me só uma vez como se fazia e nunca mais tive de procurar como fazer um depósito”.

Auto-didacta que ainda hoje trabalha
Sempre com a determinação que lhe é característica, Jacinto Sousa Rego diz que sempre foi assim e acrescenta “por exemplo, eu não sabia dourar mas meteu-se na minha cabeça que eu havia de dourar livros e agora faço isso”.
Queremos saber mais e Jacinto Sousa Rego reafirma primeiro quem “se não soubesse ler, não sabia compor as letras e aprendi com o Correio dos Açores. Levei anos para saber o que sei ler hoje e sem professor”.
Depois, lá conta que desde os 14 anos que encadernava livros, “mas não fazia o que faço hoje, nem sabia o que era ouro”. É aí que diz que agora faz encadernações e que imprime as letras douradas nos livros que encaderna. Já tem até um seguidor, “o meu Manuel António que sabe mais do que eu, para ouro então tem umas mãos santas”, refere.

Jacinto faz as lombadas e o seu filho faz os dourados de embelezamento, “ele é que faz isto, com uma perfeição só vista”, mostra num dos livros que tem pousado no sofá ao mesmo tempo que afirma: “Ensinei ao meu filho mas com a condição de ele nunca ensinar a ninguém” e explica porquê. “Eu fui ao senhor Dâmaso, em Ponta Delgada e disse-lhe que queria aprender a dourar. Ele disse-me que ‘quem dá a vista fica cego’ e que tinha dois filhos e não me podia ensinar nada a mim”. Jacinto saiu “triste porque ele não me quis ensinar mas jurei que havia de aprender e aprendi. Sozinho. Batalhei e aprendi a dourar”.
Começa então a contar como surgiu a ideia de escrever as letras douradas nas capas dos livros. Mesmo sem saber como dourar comprou o ouro e os ferros, “para começar sozinho”. 
Numa pequena oficina que tem ao fundo da casa e que ainda hoje se mantém, Jacinto Sousa Rego começou ali a fazer experiências. “Aquecia o ferro e apenas sabia que o ouro se trabalhava quente. Punha as letras numa espécie de prensa e borratava tudo. A minha esposa ainda era viva e eu chamei-a para ir ver eu a dourar. Ela disse-me que eu não sabia fazer aquilo e eu respondi “quem quer pode e quem quer faz”, frase que constitui um lema na sua vida.
A esposa nunca pensou que conseguisse, até que um dia, deitado na cama, não conseguia deixar de pensar no investimento que tinha feito porque “tinha 18 contos de ouro, um rolinho que ainda tenho ali. Já dourei milhares de livros mas aquele ouro ainda está ali”.
Deitado, começou a pensar “mas como é que será que as tipografias douram?”. E, nisto, levantou-se e foi para a pequena oficina. “A minha esposa estava a dormir e eu fui de pijama fazer experiências. Lá tentei e metade ficou lindamente bem mas a outra metade ficou toda borratada”. Então, percebeu que alguma coisa tinha acontecido para não ter saído tudo bem “ou quente demais ou frio demais pensei, porque eu não era tolo”, afirma.
Foi ao quarto mostrar à esposa que “já sabia dourar e que só tinha conseguido que ficasse bem uma parte mas que seria aquela que me ia ensinar a dourar”, ao que a esposa responde que “estava muito bonito e que era pena que a outra parte estivesse borratada”. 
A resposta foi, novamente, o lema de vida “quem quer pode” e foi fazendo experiências até que aprendeu o segredo “que está no calor. Eu experimento o calor do ferro nos nós dos dedos. Já ensinei ao meu rapaz e ele doura que é uma maravilha”, explica ao mesmo tempo que nos encaminha para a pequena oficina. Ali, mostra os utensílios que usa para imprimir os detalhes dourados nas capas dos livros e recorda que “foram caros”. Até aí foi bafejado pela sorte, porque o filho ia muitas vezes a Lisboa fazer formações e um dia encontrou um senhor na rua que “também era aqui das ilhas, mas não era de São Miguel” e que se queria desfazer dos seus utensílios de trabalho porque ia regressar à ilha de origem. 
O filho tentou fazer negócio e perguntou o preço do material. Perante a resposta de 300 contos, Jacinto recebe uma chamada do filho que lhe conta o sucedido e pergunta se pode fazer o negócio “porque eu já lhe tinha falado destes utensílios e ele diz-me que aquelas ferramentas me iam ajudar muito no meu trabalho”. Pede dinheiro emprestado “porque um homem do mar não tem esse dinheiro” e, num ano, pagou os utensílios. Orgulhoso, mostra como se faz o fio dourado impresso num pedaço de couro e demonstra que a destreza e mão firme ainda se mantêm. 

Jacinto Sousa Rego exibe o trabalho feito e lembra que “se não soubesse ler nada disto acontecia”. Volta a lembrar que a casa, que agora é a sua, mas que era do seu avô, era forrada com jornais. “Quando se guarnecer, forrava-se as paredes todas”. 
Quando entrava em casa do avô e reconhecia as fotografias do antigo Presidente do Conselho, Salazar, Jacinto dizia sempre que Correio dos Açores foram a primeiras palavras que leu. 
Comparando os jornais com que aprendeu a ler e o jornal actualmente, Jacinto Sousa Rego diz que “era muito diferente na altura, não era a cores mas tinha fotografias. Agora o jornal está melhor e daqui a 10 anos ainda há-de estar melhor”, afiança.
Setenta anos depois de ter aprendido a ler com o Correio dos Açores, Jacinto Sousa Rego senta-se novamente com o jornal na mão e lê orgulhoso até as letras mais pequenas, como gosta de dizer.

Autor: Carla Dias, Açoriano Oriental

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