Social
A história do cabo-de-mar Xatinha

A história do cabo-de-mar Xatinha

Francisco Andrade de Medeiros, de 86 anos, natural do Faial mas residente no Pico, há muito que partilha pequenas histórias que aconteceram a terceiros, que presenciou ou que lhe foram contadas e bem guardadas na memória. Primeiro fê-lo apenas em jornais e na rádio mas, mais recentemente e com a adesão às novas tecnologias, é no “Facebook” que vai dando a conhecer ou recordando momentos que também fazem parte da própria história dos Açores. Contudo, entre tantos relatos, encontramos igualmente a história de vida daquele que por muitos é ainda tratado por cabo-de-mar ou Xatinha. 

O percurso profissional é extenso e a vida tem sido bastante preenchida. Por isso, afirma: “Estou muito satisfeito com tudo aquilo que fiz; sinto-me realizado”.

Francisco Medeiros nasceu a 25 de julho de 1931 na casa dos pais no Bairro Mouzinho de Albuquerque, na freguesia das Angústias, mas a ligação com o Pico é forte: do lado materno tem raízes do lugar das Sete Cidades e do paterno da Areia Larga, do qual herdou o apelido Xatinha que orgulhosamente mantém. “O meu avô, os seus irmãos e os primos foram daqueles que, entre outros, com as suas embarcações, ajudaram a salvar várias pessoas no naufrágio da barca francesa ‘Caroline’, em 1901, junto à Areia Larga, no Mar da Meia Broa. Os Xatinhas distinguiram-se na pesca. Agora, há Xatinhas espalhados pelos quatro cantos do mundo”, frisa.

Sendo o mais novo dos cinco filhos do casal (três rapazes e duas raparigas) competia-lhe, ainda pequeno, acompanhar o pai no campo, algo que Francisco não gostava de fazer: “Nós tínhamos um prédio de dois alqueires e eu ia com o meu pai semear as batatas e fazer os trabalhos necessários na terra mas nunca gostei da agricultura”, confessa-nos. Bom mesmo era nadar na Praia do Porto Pim o que fazia, às vezes faltando às aulas na Escola da Canada: “Quando eu faltava à escola com outros rapazes, tomávamos banho nus. Se não alagássemos a roupa interior as nossas mães não desconfiavam de nada. Mas, aparecia o cabo-de-mar e juntava as nossas roupas, que havíamos deixado dentro de algumas embarcações. Quando as devolvia, dava-nos uma chapada”.

Os tempos eram difíceis. Pelos nove/dez anos, o pai conseguiu-lhe um trabalho temporário durante o verão: “Chegou à Horta um navio a vapor para limpar as suas caldeiras. Só uma pessoa de muito pequeno porte podia entrar nelas. Por isso, o trabalho era feito por uma criança que permanecia lá dentro durante duas horas e depois descansava uma, voltando em seguida ao interior para passar, novamente, a escova no depósito. Éramos quatro ou cinco crianças e, naquelas cinco horas, ganhávamos mais do que um mecânico durante oito”, recorda.

Todo o dinheiro contava e, ainda criança, estava ciente das dificuldades da vida, pelo que assim se percebe como, também pelos seus dez anos, tenha aumentado o preço das couves para garantir mais alguns escudos em casa. “Semeávamos um ano trigo e outro milho e, junto às paredes do nosso prédio, plantávamos couves para aproveitar o espaço. Como tínhamos em abundância, o meu pai disse-me para encher um cesto redondo alto, daqueles em que antigamente eram transportadas as uvas durante a vindima. Antes de ir para a cidade, o meu pai deu-me indicações para vender as couves mais pequenas a meio escudo e as maiores a um escudo. Na Horta estava aquartelado um batalhão que tinha vindo do continente. Ia eu com o cesto de couves quando um sargento perguntou se eram para vender e qual o preço. Eu respondi que eram todas a um escudo. Contei as couves, vendi-lhas e fiquei de voltar lá, num outro dia, para vender-lhe mais algumas. Eu fiz o meu negócio. As couves eram boas, de talo grado, e um escudo era muito dinheiro”, afirma.

O pai, que era cabo-de-mar, apanhava na costa do Pasteleiro, à noite, com uma tarrafa, mujas e salemas, que o irmão depois vendia no mercado. E, na “marca” das cavalas, pescava, para além destas, chicharros. “Tínhamos daqueles barris de quinto cortados a meio a fazer de celhas. Tirávamos a tripa aos chicharros e salgávamos o peixe. De inverno, a minha mãe vendia o peixe às pessoas que viviam nas barracas da doca. Por vezes, iam lá a casa comprar um escudo de chicharros e não pagavam. A minha mãe deixava ficar mesmo assim. Só por aí, ela comprou um lugar no céu”.

Aos 11 anos fez o exame da quarta classe, na Escola Coronel Silveira Leal, na Praça da República, e foi aprovado com distinção. Era chegada a hora de ganhar dinheiro. “O meu pai falou com o diretor das Obras Públicas e arranjaram-me trabalho na pedreira da doca. Lá havia uns indivíduos, artistas, que aparelhavam a pedra para calcetar o caminho. O que eu tinha de fazer era dar-lhes a pedra para aparelharem e, no final do dia, contar quantas pedras tinha cada um aparelhado; anotava num papel os números e entregava-o ao mestre da pedreira. Ali recebíamos à quinzena”, diz.

Estes terão sido os primeiros dos vários ofícios de Francisco Medeiros. Para tal, valeram-lhe a sua versatilidade e esperteza.

 

De operário na descarga do carvão a cabo de mar

A juventude de Francisco Medeiros fez-se de trabalho e da procura de um futuro melhor. Com apenas 12 anos foi operário indiferenciado na descarga de carvão, nos armazéns da Fayal Coal, trabalhou na empreitada de alargamento da Estrada do Pasteleiro, aos 14 anos, já com cédula de inscrição marítima, iniciou-se na atividade piscatória e na de estivador, com 17 andava na caça à baleia, aos 18 fez o exame do 2.º ciclo no Liceu Nacional da Horta e com 20 anos ingressou no serviço militar, em Lisboa, onde concluiu o curso de sargento amanuense. Em 1953, com 22 anos, foi, na cidade da Horta, escriturário na Delegação da Direção Geral dos Serviços Hidráulicos e encarregado de obras portuárias nos portinhos do Cais do Pico e Calhau, na Candelária, mantendo estas funções durante três anos. No Calhau chegou a ter 45 homens sob a sua responsabilidade. “Ganhava 23 escudos por dia mais duas horas extraordinárias”, adianta. Entretanto, concorreu a cabo-de-mar e conseguiu vaga em janeiro de 1957; prestou serviço nos portos da Horta e do Corvo, tendo permanecido dois anos na mais pequena ilha, de março de 1957 a fevereiro de 1959; ainda em 1959 foi colocado nas Flores – foi o primeiro cabo-de-mar a desempenhar funções no Porto das Lajes. Ali ficou quatro meses até os seus serviços serem necessários na ilha do Pico. Foi aqui que chegou a 9 de junho de 1959, a bordo do navio “Carvalho Araújo”, por troca com o cabo-de-mar Freitas, para ocupar o seu lugar na Delegação Marítima de São Roque do Pico. Nesta acumulou as funções de escrivão e prático do Porto do Cais do Pico.

No Monte, na Candelária, já havia conhecido Maria da Conceição Goulart, mulher com talento para a renda, com a qual casou e teve dois filhos: Francisco Medeiros e Ana Paula Medeiros.

Se os dias eram passados na Delegação Marítima de São Roque, as noites eram à mesa, em casa, no Cais do Pico, em trabalho particular: “A luz era desligada à meia-noite mas até lá eu aproveitava para desenhar barcos e alterações a embarcações que me eram solicitadas pelos proprietários das mesmas”.

A reforma chegou no final da década de 1980, aos 57 anos, mas, mesmo depois, chegou a ser recebido, com honras de almirante, numa corveta da Marinha atracada no Porto do Cais do Pico. Foi um equívoco que muito fez rir.

 

Ao serviço da sociedade

São já mais de 50 anos de vida passada em São Roque do Pico, com Francisco Medeiros, sempre que possível, a dar o seu contributo para o desenvolvimento da sociedade, principalmente ao fazer parte dos corpos diretivos de diversas instituições: sócio-fundador do Clube Naval de São Roque do Pico e do qual foi o primeiro presidente da Assembleia-geral e, igualmente, sócio-fundador dos Amigos do Museu dos Baleeiros; na Santa Casa da Misericórdia de São Roque, da qual é Irmão desde 1959, foi provedor de 1989 até 1998, entre outros cargos para os quais foi eleito naquela instituição; integrou os órgãos sociais da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de São Roque, do Vitória Futebol Clube, da Filarmónica Liberdade do Cais do Pico e da Liga dos Amigos de São Roque e ainda fez parte da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de São Roque do Pico.

Após a crise sísmica de 1973, foi nomeado pelo governador civil da Horta para apoiar os sinistrados do concelho de São Roque. Foi ainda correspondente dos jornais faialenses O Telégrafo e Correio da Horta e também do rádio Clube Asas do Atlântico, de Santa Maria; colaborou ainda com a Rádio Cais, do Pico, os jornais Diário Insular, da ilha Terceira, Tribuna das Ilhas e Jornal do Triângulo, ambos com sede no Faial, e O Dever, das Lajes do Pico. Nos últimos anos tem mantido a colaboração com os semanários picoenses Ilha Maior e Jornal do Pico, neste último tendo, inclusivamente, sido seu diretor interino, ainda que em escassas edições.

Em 2012, durante o festival Cais Agosto, lançou o livro Homens de Olhos Encovados e Outras Estórias de Homens do Mar, no qual recorda mais de uma centena de vigias da baleia que marcaram a baleação nas nove ilhas e partilha alguns episódios que tiveram como pano de fundo o mar açoriano. Trata-se de uma obra que contribui, sobretudo, para a perpetuação da história da baleação. Este ano, no Dia do Município de São Roque, foi distinguido pela autarquia.

Apesar de tudo isto, as saudades do tempo de meninice no Faial são muitas, das brincadeiras com os amigos, da vida familiar. Ainda se enchem os olhos de lágrimas quando recorda esses momentos e também quando nos fala da explosão de uma mina nos armazéns da Fayal Coal, na década de 1930. era lá que o irmão António trabalhava e quando se deu o acidente a população acorreu ao local. Por instantes, a família pensou que também António havia falecido. Felizmente, António saiu ileso mas a dor sentida, ainda que por breves instantes, pela família foi algo que Francisco Medeiros nunca esqueceu.

O casamento de Francisco Medeiros já chegou aos 60 anos, a descendência vai nos quatro netos e o mundo continua a atrair a curiosidade do antigo cabo-de-mar porque, para o Xatinha, nunca é demasiado tarde para aprender.

Fonte: Célia Machado / Açoriano Oriental

Deixe um Comentário