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Há um mexilhão endémico das fontes hidrotermais dos Açores com propriedades para a regeneração e cicatrização da pele humana

Há um mexilhão endémico das fontes hidrotermais dos Açores com propriedades para a regeneração e cicatrização da pele humana

Correio dos Açores – Estudou o Bathymodiolus azoricus e as suas aplicações na biotecnologia. Em que consistiu ao certo este estudo?
Raul Bettencourt (investigador açoriano ao serviço do Grupo de Investigação 3B’s – Biomateriais, Biodegradáveis e Biomiméticos) – O Bathymodiolus azoricus é um mexilhão, um molusco bivalve. Tentei fazer uma caracterização do mexilhão, relativamente ao seu ambiente e como ele se adaptou ao ambiente. É esta adaptação que o torna um animal único na sua forma de sobreviver. São ambientes extremos, são ambientes onde há elementos tóxicos nos fluidos que saem do fundo do mar, nas fontes hidrotermais. É um PH muito baixo, temperaturas muito elevadas, uma pressão muito elevada. Todas estas condições ambientais tornaram o animal num ser único do ponto de vista adaptativo e, por conseguinte, todas as moléculas, substâncias, produtos que esse animal possa utilizar para defender-se do meio ambiente ou adaptar-se ao meio ambiente, pode ter uma utilização para o homem, uma aplicação em várias áreas da biotecnologia.

Foi nessa área que se focou?
Neste caso, a área que me interessa mais é a área biomédica, as aplicações biomédicas. Mas pode ter uma aplicação na indústria farmacêutica ou na indústria cosmética ou cosmocêutica, que é uma outra área que me interessa muito e que tentei desenvolver na Horta, no Departamento de Oceanografia e Pescas, da Universidade dos Açores. O aspecto adaptativo do animal ao meio ambiente. Isto para justificar a pesquisa e a procura de produtos naturais produzidos nesse animal para aplicações biotecnológicas, para o bem-estar do homem.
Também a questão das bactérias que este animal possui, em simbiose nas suas brânquias e as comunidades microbianas que vivem à volta desse animal. Falei nas bactérias por elas serem relativamente fáceis de isolar, as que são isoláveis, que são coleccionáveis, digamos assim. Porque, como pode imaginar é difícil reproduzir as condições ambientais em laboratório, daí que aquelas poucas bactérias que conseguimos isolar e fazer crescer em laboratório, representam uma ínfima parte do que existe no fundo do mar mas mesmo assim, conseguimos organizar uma colecção de cerca de 300 bactérias diferentes, com origem nessas fontes. Aí o trabalho torna-se muito mais aplicativo e de interesse biotecnológico porque foi possível preparar extractos a partir dessas bactérias e testar esses extractos, em ensaios que têm a ver com a saúde da pele.
Neste caso, a ideia era desenvolver ou aplicar um extracto ou vários, em cosmética, aproveitando as propriedades biológicas que esses mesmos extractos contêm.
Essa colecção pode ser mantida durante muito tempo em congelação, a menos 80 graus, em certas condições e podem ser reavivadas e postas novamente a crescer para continuar a estudar ou fazer ensaios biológicos com as mesmas.

Está a ser aplicado este modelo?
Nesse momento, esse modelo não está a ser utilizado. Por enquanto. Mas estamos à procura de financiamento. E agora que estou na Universidade dos Minho, no grupo de investigação dos 3B’s [ Biomaterials, Biodegradables and Biomimetics – Biomateriais, biodegradáveis e biomiméticos], liderado pelo professor Rui Reis, há uma secção desse grupo que trabalha com produtos naturais de origem marinha e desenvolvem biomateriais a partir de produtos extraídos de animais invertebrados marinhos, como as esponjas do mar, estrelas-do-mar, ouriços.
Com este novo modelo do Bathymodiolus azoricus, tornou-se interessante o trabalho. Porque foi trazer para este laboratório no Minho, entre Braga e Guimarães, no parque tecnológico Avepark, o modelo açoriano, que foi estudado por um açoriano, e que continua a ser objecto de estudo nesse instituto.

A colecção que fala está nos Açores?
Neste momento está nos Açores. Existe a possibilidade de continuar a trabalhar com essa colecção neste instituto, que se dedica à investigação de biomateriais, bioremediação e biomimetismo, tudo aspectos biotecnológicos que são estudados lá.
Desenvolvemos um projecto que consiste em utilizar essas bactérias que falei, como micro-fábricas. Dada a relativa facilidade com que se pode trabalhar com as mesmas, desde que possam crescer em condições ambientais em laboratório, depois as aplicações são inúmeras.
Neste momento estamos a pensar usar essas bactérias como micro-fábricas para processar sub-produtos da indústria do pescado. Como sabe a indústria do pescado tem sub-produtos que não são utilizados e que representam uma mais-valia. Há um valor que pode ser acrescentado se for transformado e utilizado na indústria agro-pecuária, ou na indústria da alimentação ou na cosmética. Essa parte é que nos interessa, a saúde da pele, não é a cosmética entendida como um embelezamento, para isso há outros produtos. Neste caso a cosmocêutica, que é uma fusão entre a farmacêutica e a cosmética, de modo a melhorar a saúde da pele. Pensamos que essas bactérias, para além dos extractos que podemos fazer com as mesmas, podem ser utilizadas a favor do homem, como ferramentas microscópicas, que possam transformar a biomassa. Até pode ser a biomassa vegetal, mas neste caso estamos muito interessados na biomassa animal, da indústria do pescado, e aproveitar aqueles restos para submeter esse material à actividade dessas bactérias. Aí teríamos de isolar várias estirpes, caracterizá-las e obter-se fragmentos de proteínas, aminoácidos, que podem ser incorporados em fórmulas cosméticas para o benefício da pele.
Este grupo em que estou, está muito interessado na regeneração da pele e na cicatrização. O próprio mexilhão tem o pé que sai da concha e esse pé, produz proteínas adesivas, com propriedades muito interessantes de adesão, muito superior a colas industriais que encontramos no mercado. A ideia é aproveitar e estudar essas proteínas para desenvolver novos adesivos cirúrgicos, permitindo a cicatrização de feridas na pele, sem deixar marcas, sem cicatrizes. São produtos que vão interagir com as próprias moléculas e estruturas das células da pele, ao mesmo tempo que cicatriza. Existe já um trabalho feito com outros mexilhões, mas não com esta visão biomédica.

Essa visão biomédica, com este mexilhão açoriano em que pé é que está?
Não está muito avançada, porque isto começou há um ano neste instituto da Universidade do Minho. Mas estamos neste momento a proceder a extracções e a caracterizações bioquímicas. Aí já está bem adiantado. Já temos uma ideia de quais são essas proteínas.
A parte genética deste estudo, ao sequenciar o que designamos por transcriptoma. E faço aqui a distinção entre genoma e transcriptoma, em que o genoma é toda a informação genética contida nas nossas células, qualquer que seja a célula. O transcriptoma é a parte desse genoma que é transcrito, activado e que codifica. Uma proteína, uma enzima, um produto que tenha uma base genética.
O que fizemos recentemente foi descodificar essa informação genética contida no tecido do pé, exclusivamente do pé, para estreitar o campo do estudo limitando-o apenas àquele tecido. E obtivemos uma quantidade surpreendente, acho que nunca tínhamos visto tanto gene cuja informação ainda não se conhece, porque não existe nada parecido nas outras bases de dados. Mas encontrámos colagénio, fibronectina, essas proteínas adesivas do pé do mexilhão, com o código genético nessa informação. O que nos vai permitir fazer depois a engenharia genética, que é pegar nessa informação, metê-la num sistema que vai produzir artificialmente essas proteínas. Neste momento, o grupo onde estou está preparado para isso. Tenho colegas que são especialistas nesta matéria e há uma grande interacção e eu vejo este trabalho com muito potencial e com um futuro promissor.

Todas as características que falou do Bathymodiolus azoricus, são características especiais pelo facto dele existir só nas fontes hidrotermais dos Açores?
Precisamente. Existem fontes hidrotermais de profundidade em outras partes do mundo, no Pacífico, na Ásia. E encontramos mexilhões nesses locais, provavelmente até com propriedades semelhantes aos mexilhões que encontramos nos Açores. Mas, o que torna este animal único é o facto de nunca ter sido estudado nesta perspectiva da aplicação biotecnológica. Utilizar o animal como uma ferramenta, como uma caixa biotecnológica, quase como uma Caixa de Pandora, que vamos explorar, que se abre, de onde se retira, coisas que nunca tínhamos visto antes. E por ser dos Açores ainda tem mais valor, não só emocional ou afectivo, mas também todo o contexto geográfico e até histórico que nos identifica muito com este estudo. Não só a mim mas a todos os açorianos e colegas que trabalharam no Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, não só na Horta, mas em São Miguel também, porque colaboro com outro grupo em São Miguel, do professor Nelson Simões e da sua equipa. O facto de este animal permitir todo este trabalho, torna-se emblemático e um elo de ligação entre nós e cientistas do continente e do mundo inteiro. É uma forma de nos unir a todos, com um objectivo comum.

Mas para se chegar até aqui, há quanto tempo trabalha neste projecto?
Não fui eu que encontrei a biotecnologia marinha, foi a biotecnologia marinha que me encontrou a mim, porque ela esteve sempre lá mas eu não tinha ainda a visão do potencial que este animal tinha.
A investigação que desenvolvi, nomeadamente o estudo das respostas imunitárias e defesas que este animal tem, como todos os animais têm, no meio ambiente em que se encontra, é que me despertou a atenção. Comecei a ver que havia aqui coisas, respostas e moléculas, que me faziam lembrar outras situações das quais eu sabia que havia aproveitamento biotecnológico. Mas foi graças a esta investigação que começou em 2004. Já são 14 anos de estudo deste animal.
Mas a parte biotecnológica, começou há uns cinco anos, porque já havia muito trabalho por detrás, muito estudo fundamental que nos facilitou a entrada nesta área da biotecnologia. Conhecíamos muito bem a parte ecológica do animal, do ecossistema em que se encontra, conhecíamos muito bem a sua fisiologia, mas a própria expressão genética deste animal, houve um trabalho muito importante que foi publicado em 2010 e que mostrou pela primeira vez ao mundo inteiro, um resultado sobre a análise transcriptómica deste animal, que nunca tinha sido feito para nenhum animal das fontes hidrotermais. Nenhum, no mundo inteiro. Foi o primeiro, foi português e foi açoriano. Claro que isto, em colaboração com um outro grupo em Cantanhede, o Biocant, mas foi um trabalho made in Azores e made in Portugal, que nos projectou e nos colocou no mapa científico desta área. A publicação foi numa revista muito boa, com um factor de impacto considerável e que tem sido referenciado ao longo destes 8 anos. Sempre que há um trabalho sobre transcriptoma, sobre um animal marinho, um bivalve, lá está o nosso trabalho a ser citado. Temos mais de 3 mil visualizações do trabalho e citações já ultrapassámos a centena. Mas ainda não vi a visão biotecnológica para nenhum desses trabalhos. Foi a partir daí, quando começámos a ver o animal como um modelo que responde a estímulos, mas em vez de olharmos para 1 ou 2 ou 3 genes, começámos a olhar para centenas de genes ao mesmo tempo. Sabemos como é que o animal reage e se comporta quando é estimulado. A evolução biotecnológica foi uma evolução natural. Decorreu deste trabalho de investigação, mas começou essencialmente há 5 anos. Também contou com a participação de três alunos de doutoramento que aproveitaram o modelo para constituírem a base das suas teses de doutoramento, que entretanto terminaram.

Fonte: Correio dos Açores

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