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Quem foram os portugueses que salvaram Jean Georgelin?

Quem foram os portugueses que salvaram Jean Georgelin?

8768803Delegação da associação francesa de memória durante a visita a Ilhavo, com o objectivo de encontrar sobreviventes que socorreram o antigo pescador

Tripulantes do navio português Águas Santas resgataram, em 1959, das águas geladas do Atlântico Norte um jovem pescador francês. Passados quase 60 anos, há quem queira prestar a devida homenagem a esses “heróis” lusos, que, na sua maioria, ainda estão por identificar.

Naquele que seria mais um dia de trabalho a bordo igual a tantos outros, Jean Georgelin, um jovem pescador francês, tripulante do navio Colonel Pleven, acabou por cair ao mar, em pleno Atlântico Norte, numa latitude onde a temperatura da água torna, ainda, mais difícil uma batalha pela sobrevivência. Ninguém o terá visto cair, razão pela qual ainda terá levado algum tempo a ser ecoado, a partir da ponte de comando do Colonel Pleven, o alerta “Mayday” (palavra-código para emergência). A chamada foi escutada a bordo do Águas Santas, arrastão português que andava a pescar bacalhau na mesma zona, e cuja tripulação conseguiu resgatar o jovem pescador francês das águas geladas, são e salvo.

Esta é uma história com um final feliz, ocorrida em 1959, durante a primeira campanha de pesca do ano – ao contrário dos lugres, os arrastões cumpriam duas viagens por ano aos grandes bancos da pesca –, e que não se encontra registada em documentos ou livros. Mas é recordada, com toda a exactidão, na memória de um homem em particular: Jean Georgelin, na altura jovem pescador, actualmente, empresário de sucesso na área dos transportes. Os anos passaram, mas o francês não esquece que “é aos tripulantes do navio português que deve a vida”, como o próprio costuma referir, e se há sonho que gostava de concretizar é o de “dizer obrigado” aos homens que, em 1959, integravam a tripulação do Águas Santas.

Já passaram quase 60 anos, grande parte dos tripulantes de ambos os navios já terão morrido, mas o sonho de Jean Georgelin vir a Portugal dizer “muito obrigado” é grande. De tal forma que já conseguiu “contagiar” vários amigos, que tal como ele fazem parte da associação Mémoire et Patrimoine des Terre Neuvas – uma colectividade sediada em Saint-Malo, França, que visa preservar a memória e património da pesca do bacalhau na Terra Nova. Jean Georgelin não sabe, mas alguns representantes da associação à qual pertence acabam de vir a Portugal, com o objectivo de tentar localizar algum homem que tenha feito parte da tripulação do Águas Santas em 1959. “A nossa ideia era fazer-lhe uma surpresa. Poder encontrar algum tripulante e preparar uma cerimónia para ele poder vir cá, agradecer a quem o salvou da morte”, explicou ao PÚBLICO Michel Lee Bolloch, um dos elementos da Mémoire et Patrimoine des Terre Neuvas. “Sabemos que é algo que ele quer muito fazer, portanto, vamos tentar por tudo”, acrescentou.

De Ílhavo até Caminha
O primeiro ponto de paragem de Michel Lee Bolloch e dos outros quatro companheiros que vieram consigo até Portugal – entre os quais o presidente da associação, Hyacinthe Chapron – foi o Museu Marítimo de Ílhavo, instituição de referência na investigação e património da pesca do bacalhau. “Fez-se uma pesquisa, mas não conseguimos encontrar uma lista de tripulantes do Águas Santas desse ano”, desvendou Ana Maria Lopes, antiga directora do museu e investigadora nesta área. “Os documentos que o museu tem são os que foram cedidos por instituições como o Grémio [dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau], mas elas também só cederam o que tinham”, explicou. “Mas encontrámos a ficha do navio, o que já pode ser um bom ponto de partida para investigar, cruzar dados e tentar chegar aos tripulantes”, acrescenta, a propósito dos esforços já encetados por si, por vários elementos da Associação dos Amigos do Museu (AMI) e pelos responsáveis da unidade museológica.

Além da ficha que congrega os dados da embarcação construída na Holanda, em 1949, e que foi, depois, adquirida pela Empresa Comercial e Industrial de Pesca – com sede na Rua do Comércio, em Lisboa -, a comitiva da associação francesa garante ter levado também de Ílhavo “experiências inesquecíveis” e totalmente inesperadas. Exemplos? Fruto do mero acaso, Hyacinthe Chapron, presidente da associação e que foi capitão da pesca do bacalhau durante muitos anos, reencontrou por estas terras um capitão português, Valdemar Aveiro, que havia conhecido na Terra Nova, em 1957, e que nunca mais tinha encontrado. “O meu coração está a bater forte”, relatava, na altura do reencontro. “E também houve a feliz coincidência de termos connosco o capitão Júlio Bela, que pertence à AMI, e foi comandante do Colonel Pleven,enquanto o navio foi português”, acrescentou Ana Maria Lopes.

Cumprida a visita ao Museu Marítimo de Ílhavo, a comitiva da associação Mémoire et Patrimoine des Terre Neuvas seguiu para Caminha, terra de onde levaram também uma “mala cheia” de emoções fortes. “Fruto do levantamento que temos vindo a fazer, em que temos já o registo de mais de 700 homens de Vila Praia de Âncora que andaram na pesca do bacalhau, conseguimos apurar que, em 1959, existiam três pescadores daqui embarcados no Águas Santas. Um já morreu, outro está emigrado em França, mas há um, o senhor Alfredo Presa, que está por aqui”, enquadrou Aurora Rego, investigadora que integra os quadros da câmara municipal de Caminha e que recebeu a comitiva de Saint-Malo.

A verdade é que Alfredo Presa, com 81 anos, não se recorda do episódio do salvamento de Jean Georgelin, mas “isso não é assim tão estranho”. “Como o pescador francês foi retirado da água e levado para o seu navio, sem passar pelo Águas Santas, e como o trabalho a bordo era feito por turnos, pode ter-se dado o caso de o Sr. Alfredo Presa estar a dormir na altura em que tudo aconteceu e nem ter sabido de nada”, explicou Aurora Rego ao PÚBLICO. Mas, ainda que não tivesse memória do caso, “o encontro entre o senhor Alfredo e a comitiva francesa foi muito emotivo. Choraram, cantaram, ficaram amigos”, acrescentou.

Agradecimento aos “amigos portugueses”
Para muitos homens do mar o episódio protagonizado pelos tripulantes do navio português pode não parecer assim tão extraordinário. A história da pesca do bacalhau viveu outros episódios semelhantes de salvamento de pescadores – ainda que nem todos tenham tido um final feliz. Mas para Jean Georgelin, actualmente com cerca de 80 anos, aquele momento fez toda a diferença e é a ele que deve o facto de ainda viver. E sente-o de forma tão intensa que, mesmo a 57 anos de distância, chora ao lembrar-se do que aconteceu naquele dia. Muito embora o antigo pescador não tenha feito parte da comitiva que viajou, na passada semana, até Portugal – e nem sonhe que estes contactos estão a ser encetados – há um vídeo da Mémoire et Patrimoine des Terre Neuvas no qual conta, de forma muito emocionada, a sua história.

“Só via o Colonel Pleven a afastar-se cada vez mais de mim e eu na água”, relata, a propósito da aflição que viveu depois de cair do navio, com a roupa de oleado vestida. “Perdi a noção do tempo”, acrescenta. “Vi, depois, um outro navio, de cor preta, a aproximar-se. Era o Águas Santas. Pensei: vem procurar-me”, prossegue, sem conter as lágrimas. “Desceram um dóri do navio e vieram até mim”, conta ainda o homem que tem consciência que deve a vida “aos amigos portugueses”, como faz questão de frisar neste mesmo vídeo.

Jean Georgelin terá, certamente, mais pormenores para contar e explicar – como por exemplo, que memórias guarda dos homens que o retiraram da água –, mas essas perguntas terão de ficar para mais tarde. Ao que tudo indica, para Outubro, altura em que a associação Mémoire et Patrimoine des Terre Neuvas estima poder levar a efeito a devida homenagem aos homens do Águas Santas. “O nosso objectivo é que a cerimónia se realize em Portugal”, revelou Michel Lee Bolloch. O Museu Marítimo de Ílhavo é, para já, o local apontado para esse evento. Mas até lá há ainda muito trabalho a fazer, nomeadamente, tentar encontrar outros homens que, em 1959, estiveram no Águas Santas. “Quem tiver uma pista, souber de um familiar que lá tenha andado, pode contactar-nos. Mesmo que se trate de pessoas que já tenham falecido é uma ajuda para nós”, apela este membro da associação francesa.

Fonte: Público

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